A lente que vê suas próprias falhas

Os raios de luz emanam do Sol e atingem seus cadarços e ricocheteiam; alguns fótons entram nas pupilas de seus olhos, atingindo sua retina; a energia dos fótons desencadeia impulsos neurais; os impulsos neurais são transmitidos às áreas de processamento visual do cérebro; onde a informação ótica é processada e reconstruída em um modelo 3D, que é, então, reconhecido por você como um cadarço desamarrado; e assim, você acredita que os seus cadarços estão desamarrados.

Este é o segredo da racionalidade deliberada — todo esse processo não é magia, e você consegue compreendê-lo. Você entende como consegue ver seus cadarços. Você consegue pensar quais tipos de processos mentais darão origem a crenças que espelharão a realidade, e, quais deles não farão o mesmo.

Camundongos enxergam, mas não entendem por que enxergam. Você entende a visão, e por causa disso, você consegue fazer coisas que os camundongos não conseguem. Pare um pouco e se maravilhe com isso, pois isso é realmente algo maravilhoso.

Camundongos veem, mas não sabem que possuem córtex visual, portanto não conseguem corrigir ilusões de ótica. O universo mental habitado pelo camundongo inclui gatos, buracos, queijo e ratoeiras — mas não cérebros de camundongos. Suas câmeras não tiram fotos de suas próprias lentes. Porém, nós, como seres humanos, podemos olhar para uma imagem aparentemente bizarra, e compreender que parte daquilo que estamos enxergando é a própria lente em si. Você não precisa acreditar sempre naquilo que vê, mas precisa ter consciência de que possui olhos —  possui compartimentos mentais distintos para organizar o mapa e o território, os sentidos e a realidade. Antes que você pense que essa habilidade é trivial, lembre-se que ela é rara no reino animal.

A ideia de ciência é, simplesmente, o raciocínio reflexivo sobre um processo mais confiável para fazer os conteúdos da sua mente espelharem os conteúdos do mundo. É o tipo de coisa que os camundongos jamais inventariam. Ao ponderar sobre esse negócio de “realizar experimentos replicáveis para falsificar teorias,” dá para ver por que isso funciona. A ciência não é um magistério à parte, distante da realidade e do entendimento de meros mortais. A ciência não é nada que se aplica somente ao interior dos laboratórios. A ciência, em si, é um processo compreensível que acontece no mundo, e que, correlaciona cérebros com a realidade.

Ela faz sentido, quando pensamos sobre ela. Mas camundongos não conseguem pensar sobre o pensar, e, é por isso que eles não têm ciência. Não devemos ignorar o quanto isso é maravilhoso — ou o poder potencial que isso confere a nós como indivíduos, não apenas como sociedades científicas.

Reconhecidamente, entender a máquina do pensamento pode ser um pouco mais complicado do que entender uma máquina a vapor — mas não é uma tarefa fundamentalmente diferente.

Uma vez, eu entrei numa sala de bate-papo sobre filosofia na EFNet e perguntei, “Vocês acreditam que uma guerra nuclear acontecerá nos próximos 20 anos? Em caso negativo, por que não?” Uma pessoa que respondeu à minha pergunta disse que não esperava que uma guerra nuclear fosse acontecer por 100 anos, porque “Todos os atores envolvidos nas decisões sobre guerras nucleares, não estavam interessados numa guerra agora.” “Mas por que prolongar esse prazo para 100 anos?” Perguntei. “Esperança, só isso”, ele respondeu.

Ao refletir sobre esse processo de raciocínio, conseguimos entender que a ideia de uma guerra nuclear deixa uma pessoa triste, e entendemos como, consequentemente, seu cérebro rejeita essa crença. Mas se você imaginar um bilhão de mundos — ramificações de Everett ou duplicatas de Tegmark1 — esse processo de pensamento não relacionará sistematicamente os otimistas a ramificações nas quais não ocorre nenhuma guerra nuclear. (Algum sujeito inteligente está fadado a dizer: “Ah, mas já que tenho esperança, vou trabalhar um pouco mais no meu trabalho, impulsionar a economia global e, assim, ajudar a impedir que os países caiam no estado raivoso e sem esperança em que uma guerra nuclear é uma possibilidade. Então, ambos os eventos estão, sim, relacionados, afinal.” A essa altura, precisamos arrastar o Teorema de Bayes para a conversa e medir essa relação quantitativamente. Sua natureza otimista não pode ter um efeito tão grande no mundo; não pode, por si só, diminuir a probabilidade de uma guerra nuclear em 20%, ou por mais que sua natureza otimista mude suas crenças. Deslocar muito as suas crenças, devido a um evento que aumenta em muito pouco as chances de você estar correto, ainda assim bagunçará o seu mapeamento.

Perguntar quais das suas crenças te fazem feliz é voltar-se para dentro de si mesmo, e, não, para fora — isso te diz algo sobre si, mas não é uma evidência atrelada ao ambiente externo. Eu não sou contra a felicidade, mas ela deveria acompanhar a sua própria visão de mundo, ao invés de interferir em suas ferramentas mentais.

Se você consegue entender isso — se consegue entender que a esperança está deslocando demais os seus pensamentos de primeira ordem — se reconhecer a sua mente como uma espécie de motor de mapeamento que possui falhas — então você conseguirá aplicar uma correção reflexiva. O cérebro é uma lente defeituosa através da qual enxergamos a realidade. Isso se aplica tanto aos cérebros dos camundongos quanto aos cérebros dos seres humanos. Porém, o cérebro humano é uma lente defeituosa capaz de entender suas próprias falhas — seus erros sistemáticos, seus vieses — e implementar correções de segunda ordem. Isto, na prática, torna nossas lentes muito mais poderosas. Não perfeitas, mas muito mais poderosas.

  1. Max Tegmark, “Parallel Universes,” in Science and Ultimate Reality: Quantum Theory, Cosmology, and Complexity, ed. John D. Barrow, Paul C. W. Davies, and Charles L. Harper Jr. (New York: Cambridge University Press, 2004), 459–491.