Disponibilizando a História

Existe um hábito de pensamento que chamo de falácia lógica da generalização a partir de evidências fictícias. Por exemplo, jornalistas que falam sobre os filmes do Exterminador do Futuro em uma reportagem sobre IA não costumam tratá-los como profecia ou verdade. No entanto, o filme é lembrado — e disponibilizado, por assim dizer —como se fosse um caso histórico ilustrativo. É como se os jornalistas tivessem visto isso acontecer em algum outro planeta, e que, portanto, pode muito bem acontecer aqui. Mais informações sobre esse tema podem ser encontradas na Seção 7 do artigo Cognitive biases potentially affecting judgment of global risks (Vieses Cognitivos que Podem Afetar o Julgamento de Riscos Globais).1

Há também um erro inverso que consiste em não se mover suficientemente por evidências históricas. O problema em generalizar a partir de evidências fictícias é que estas nunca aconteceram de verdade. Elas não são extraídas da mesma distribuição do nosso universo real, e a ficção difere da realidade de maneiras sistemáticas. Por outro lado, a história aconteceu e deve estar disponível para consulta. Em nosso ambiente ancestral, não havia cinema e, portanto, tudo o que você via com seus próprios olhos era verdade. É de se admirar que as ficções que vemos em imagens em movimento realistas tenham um impacto tão grande sobre nós? Em contrapartida, as coisas que realmente aconteceram foram registradas apenas em tinta no papel, e nunca as testemunhamos acontecer.

Não nos lembramos de tê-las vivenciado.

O erro inverso consiste em tratar a história como algo irrelevante, processando-a com a mesma parte da mente que lida com os romances que você lê. Pode-se afirmar que a história é verdadeira em vez de ficção, mas isso não significa que você esteja sendo tão movido quanto deveria. Muitos vieses cognitivos envolvem uma insuficiência na reação às informações secas e abstratas.

Era uma vez… dei uma resposta misteriosa a uma pergunta misteriosa, sem perceber que estava cometendo o mesmo erro que os astrólogos que concebem explicações místicas para as estrelas, ou alquimistas que concebem propriedades mágicas da matéria, ou vitalistas que postulam um “elã vital” opaco para explicar tudo de biologia. 

Quando finalmente percebi onde estava, houve um súbito choque de conexão inesperada com o passado. Percebi que a invenção e destruição do vitalismo — sobre o qual só havia lido em livros — aconteceu realmente com pessoas reais, que vivenciaram isso da mesma forma que experimentei a invenção e destruição da minha própria resposta misteriosa. E também percebi que se eu tivesse realmente experimentado o passado — se eu mesmo tivesse vivido as revoluções científicas do passado, em vez de lê-las nos livros de história — provavelmente não teria cometido o mesmo erro novamente. Eu não teria dado outra resposta misteriosa; as primeiras mil lições teriam martelado a moral.

Então, pensei que, para sentir suficientemente a força da história, eu deveria tentar aproximar os pensamentos de um Eliezer que viveu através da história — eu deveria tentar pensar como se tudo o que li nos livros de história tivesse realmente acontecido comigo. (Com reponderação apropriada para o viés de disponibilidade dos livros de história —  devo me lembrar de ser mil camponeses para cada governante.) Eu deveria mergulhar na história, imaginar viver eras que eu só via como tinta no papel.

Por que eu deveria me lembrar do primeiro voo dos irmãos Wright? Eu não estava lá. Mas como racionalista, eu poderia ousar não lembrar quando o evento realmente aconteceu? Existe tanta diferença entre ver um evento através dos seus olhos — que, na verdade, é uma cadeia causal envolvendo fótons refletidos, não uma conexão direta — e ver um evento por meio de um livro de história? Fótons e livros de história descendem por cadeias causais do próprio evento.

Tive que superar a falsa amnésia de ter nascido em um determinado momento. Eu tinha que relembrar — disponibilizar — todas as memórias, não apenas as memórias que, por coincidência, pertenciam a mim e à minha época.

A Terra envelheceu, de repente.

Na minha memória anterior, sempre existiram os Estados Unidos — nunca houve um tempo sem existir. Eu não havia me lembrado, até aquele momento, de como o Império Romano surgiu, trouxe paz e ordem, e durou tantos séculos. Eu havia esquecido que as coisas nem sempre foram assim; no entanto, o Império caiu, os bárbaros invadiram minha cidade e todo o conhecimento que eu possuía foi perdido. O mundo moderno parecia mais frágil aos meus olhos, mas ele não foi o primeiro mundo moderno.

Cometi tantos erros repetidamente, simplesmente porque não me lembrava de tê-los cometido em tantas outras ocasiões.

É curioso como às vezes as pessoas se perguntam se superar preconceitos é importante. Você não se lembra quantas vezes seus preconceitos o prejudicaram? Percebi que a amnésia repentina muitas vezes segue um erro fatal. Mas acredite em mim, isso aconteceu. Eu lembro; eu não estava lá.

Então, da próxima vez que você duvidar do futuro e de suas estranhezas, lembre-se de que você nasceu em uma tribo de caçadores-coletores há dez mil anos, quando ninguém sabia nada sobre ciência. Lembre-se do choque, quando a ciência explicou os grandes e terríveis mistérios sagrados que você costumava reverenciar tanto. Lembre-se de como você acreditava que poderia voar ao comer cogumelos específicos, mas depois teve que aceitar com decepção que isso nunca aconteceria, até que um dia você finalmente voou. Lembre-se da convicção de que a escravidão era justa e adequada, até mudar de ideia. Não se esqueça de que você não imaginou essa mudança. A verdade é que você não imaginou. Lembre-se de como, século após século, o mundo mudou de maneiras que você nunca imaginou.

Assim, talvez você fique menos chocado com o que acontecerá a seguir.

1. Eliezer Yudkowsky, “Cognitive Biases Potentially Affecting Judgment of Global Risks,” in Global Catastrophic Risks, ed. Nick Bostrom and Milan M. Ćirković (New York: Oxford University Press, 2008), 91–119.