O que quero dizer com “Racionalidade”?

Quero dizer:

1. Racionalidade epistêmica: aprimorar sistematicamente a precisão das suas crenças.

2. Racionalidade instrumental: alcançar sistematicamente os seus valores.

Ao abrir os olhos e olhar ao redor do quarto, você localiza seu laptop em relação à mesa e identifica a estante de livros em relação à parede. No entanto, se houver algum problema com seus olhos ou com o seu cérebro, seu modelo mental pode falhar. Você pode pensar que há uma estante de livros onde, na verdade, não existe. E quando for até lá para pegar um livro, ficará desapontado.

Ter uma falsa crença é como ter um mapa do mundo que não corresponde à realidade. A racionalidade epistêmica, por outro lado, visa construir mapas precisos dessa realidade. A correspondência entre crença e realidade é o que comumente chamamos de “verdade”, e eu não vejo nenhum problema em usar esse termo.

A racionalidade instrumental, por outro lado, trata de direcionar a realidade—conduzir o futuro para onde você quer que ele vá. É a arte de escolher ações que levam a resultados melhores, segundo as suas preferências. Eu às vezes me refiro a isso como “vencer”.

Portanto, racionalidade é formar crenças verdadeiras e tomar decisões vencedoras. Buscar a “verdade” aqui não significa ignorar evidências incertas ou indiretas. Olhar ao redor do quarto e construir um mapa mental dele não é diferente, em princípio, de acreditar que a Terra tem um núcleo derretido ou que Júlio César era calvo. Essas perguntas, embora distantes no espaço e no tempo, não são menos concretas ou relevantes do que a localização de  sua estante. Existem fatos sobre o estado do núcleo da Terra no ano  2015 EC e sobre a aparência de César em 50 AEC. Esses fatos podem impactar a sua vida de maneiras significativas, mesmo que você nunca viaje para o centro da Terra ou volte no tempo.

E “vencer” neste contexto não implica necessariamente em superar ou derrotar outros. A vida pode ser sobre colaboração e autossacrifício, ao invés de competição. “Seus valores” se referem a qualquer coisa que você considere importante, incluindo outras pessoas. Não se limita a valores egoístas ou valores não compartilhados.

Quando as pessoas dizem “X é racional!” geralmente o que elas estão enfatizando é que acreditam que X é “verdadeiro” ou “bom”. Então, por que ter uma palavra para “racional”, além das palavras “verdadeiro” e “bom”?

Um argumento análogo pode ser apresentado contra o uso da palavra “verdade”. Não há necessidade de dizer “é verdade que a neve é branca” quando você poderia apenas dizer “a neve é branca”. O que torna o conceito de verdade em algo útil é que ele nos permite falar sobre os aspectos gerais da correspondência mapa-território. “Modelos verdadeiros geralmente produzem previsões experimentais melhores do que modelos falsos” — essa é uma generalização útil, e não é uma afirmação que você possa fazer sem usar um conceito como “verdadeiro” ou “exato”.

Da mesma forma, “Agentes racionais tomam decisões que maximizam a expectativa probabilística de uma função de utilidade coerente” é o tipo de pensamento que depende de um conceito de racionalidade (instrumental), enquanto “Comer vegetais é uma escolha racional” provavelmente pode ser substituído por “Comer vegetais é uma escolha útil” ou “É do seu interesse comer vegetais”. 

Precisamos de um conceito de ‘racional’ para identificar padrões de pensamento que levam à verdade ou geram valor. Além disso, esse conceito nos ajuda a compreender as formas sistemáticas pelas quais podemos falhar em atingir esses padrões.

Às vezes, os psicólogos experimentais descobrem raciocínios humanos que parecem muito estranhos. Por exemplo, alguém classifica a probabilidade de “Bill toca jazz” como menor do que a probabilidade de “Bill é um contador que toca jazz”. Isso parece um julgamento estranho, já que qualquer contador, em particular, que toca jazz é, obviamente, alguém que toca jazz. Mas quando dizemos que esse julgamento está errado, a que perspectiva superior estamos apelando? Os psicólogos experimentais usam dois exames de referência: a teoria da probabilidade e a teoria da decisão.

A teoria da probabilidade fornece as leis fundamentais que regem a crença racional. A matemática por trás dela descreve, de forma igual e indistinta, três situações: (a) localizar sua estante de livros, (b) determinar a temperatura do núcleo da Terra e (c) estimar a quantidade de cabelos que Júlio César tinha. O desafio em todas essas situações é o mesmo: processar as evidências e observações para atualizar nossas crenças da maneira mais precisa possível. De forma análoga, a teoria da decisão fornece as leis fundamentais para a ação racional, e essas leis são aplicáveis independentemente dos objetivos e opções disponíveis.

Proponho representarmos “P (tal e tal)” como “a probabilidade de que tal e tal aconteça” e P (A, B) como “a probabilidade de que A e B aconteçam”. Uma  lei universal da teoria da probabilidade é que P (A) ≥ P (A, B). Portanto, seria incorreto afirmar que  P(Bill toca jazz) é menor do que P (Bill toca jazz e Bill é contador). Usando um jargão técnico, você diria que esse juízo de probabilidade não é bayesiano. Crenças e ações que são racionais nesse sentido matematicamente bem definido são chamadas de “Bayesianas”.

Observe que o conceito moderno de racionalidade não se limita ao raciocínio por meio de palavras. Um exemplo disso é quando abrimos os olhos, observamos o que nos cerca e criamos um modelo mental de um quarto que contém uma estante encostada na parede. O conceito moderno de racionalidade é amplo o suficiente para incluir nossos olhos e as áreas visuais do nosso cérebro como componentes que ajudam a criar esse modelo mental. Ele também engloba nossas intuições não verbais. Na matemática, não importa se usamos a mesma palavra em inglês, “racional”, para nos referirmos tanto a Spock quanto ao Bayesianismo. As equações matemáticas representam maneiras eficazes de alcançar objetivos e compreender o mundo, independentemente de essas maneiras coincidirem com nossas ideias pré-concebidas e estereótipos sobre o que é “racional”.

Isso não esgota o problema do que se entende na prática por “racionalidade”, por duas razões principais:

Primeiramente, os formalismos bayesianos em sua forma completa são computacionalmente intratáveis na maioria dos problemas reais. Ninguém pode realmente calcular e obedecer à matemática, assim como você não consegue prever o mercado de ações calculando os movimentos dos quarks.

É por isso que existe um website inteiro chamado Less wrong (Menos errado), em vez de uma única página que simplesmente declara os axiomas formais e encerra o assunto. Existe toda uma arte adicional para encontrar a verdade e alcançar valor de dentro da nossa própria mente: precisamos aprender sobre nossas próprias falhas, superar nossos preconceitos, evitar nos autoenganar, colocar-nos em boa forma emocional para enfrentar a verdade e fazer o que precisa ser feito, e assim por diante.

Em segundo lugar, às vezes o significado da própria matemática é questionado. As regras precisas da teoria da probabilidade, são questionadas, como no exemplo dos  problemas antrópicos, onde o número de observadores é incerto. Da mesma forma, as regras exatas da teoria da decisão são questionadas por problemas como o de Newcomb, nos quais outros agentes podem prever a sua decisão antes mesmo que você a tome.

Em casos como esses, é inútil tentar resolver o problema apresentando uma nova definição da palavra “racional” e dizendo: “Portanto, minha resposta preferida, por definição, é o significado da palavra ‘racional’.” Isso simplesmente levanta a questão de porque alguém deveria prestar atenção à sua definição. Não estou interessado na teoria da probabilidade porque é a palavra sagrada transmitida por Laplace. Estou interessado em atualizar crenças no estilo Bayesiano (com priori de Ocam) porque espero que este estilo de pensamento nos leve sistematicamente mais perto, você sabe, precisão, o mapa que reflete o território.

Existem perguntas sobre como pensar que parecem não ser totalmente respondidas nem pela teoria da probabilidade, nem pela teoria da decisão. Um exemplo é a questão de como se sentir em relação à verdade após descobri-la. Tentar definir “racionalidade” de uma maneira particular não fornece uma resposta, mas apenas pressupõe uma.

Não estou aqui para discutir o significado de uma palavra, nem mesmo se essa palavra for “racionalidade”. O objetivo de vincular sequências de letras a conceitos específicos é permitir que duas pessoas se comuniquem — ajudar a transportar pensamentos de uma mente para outra. Você não pode mudar a realidade, ou provar o pensamento, manipulando quais significados acompanham quais palavras.

Portanto, se você entender a que conceito geralmente estou me referindo com esta palavra “racionalidade” e com os sub-termos “racionalidade epistêmica” e “racionalidade instrumental”, nós nos comunicamos: alcançamos tudo o que há para alcançar falando sobre como definir “racionalidade”. O que resta discutir não é qual significado atribuir às sílabas“ ra-cio-na-li-da-de; o que resta discutir é o que é uma boa maneira de pensar.

Se você diz: “É (epistemologicamente) racional, para mim, acreditar em X, mas a verdade é Y”, provavelmente está usando a palavra “racional” com um significado diferente do que tenho em mente. (Por exemplo, “racionalidade” deve ser consistente sob reflexão — “racionalmente” olhando para a evidência, e “racionalmente” considerando como sua mente processa a evidência, não deve levar a duas conclusões diferentes.)

Da mesma forma, se você se pegar dizendo: “A coisa (instrumentalmente) racional a se fazer é X, mas a coisa certa a se fazer é Y”, então você quase certamente está usando algum outro significado para a palavra “racional” ou para a palavra “certa”. Emprego o termo “racionalidade” normativamente, para escolher padrões de pensamento desejáveis. 

Neste caso — ou em qualquer outro caso em que as pessoas discordem sobre o significado das palavras — você deve utilizar uma palavra mais específica no lugar de “racional”: “A coisa benéfica a fazer é fugir, mas espero pelo menos tentar arrastar a criança para fora dos trilhos da ferrovia” ou “A teoria da decisão causal, como geralmente formulada, diz que você deve apostar duas caixas no Problema de Newcomb, mas Prefiro um milhão de dólares.”

Na verdade, recomendo a leitura deste ensaio, substituindo todas as instâncias de “racional” por “tolo” e ver se isso muda as conotações do que estou dizendo. Se assim for, eu digo: lute não pela racionalidade, mas pela tolice. A palavra “racional” tem potenciais armadilhas, mas há muitos casos não limítrofes em que “racional” funciona bem para comunicar o que quero dizer. Da mesma forma, “irracional”. Nesses casos, não tenho medo de usá-la.

No entanto, deve-se ter cuidado para não abusar dessa palavra. Não se recebe pontos apenas por pronunciá-la em voz alta. Se você falar demais do Caminho, não o alcançará.

1 NT. : Era Comum

2 NT. : Antes da Era Comum

1. [Nota do editor: para uma boa introdução ao Problema de Newcomb, consulte Holt. De forma mais geral, você pode encontrar definições e explicações para muitos dos termos deste livro no site wiki.lesswrong.com/wiki/RAZ_Glossary.]

2. Jim Holt, “Thinking Inside the Boxes,” Slate (2002), http://www.slate.com/articles/arts/egghead/ 2002/02/thinkinginside%5C_the%5C_boxes.single.html.