Guardiões da verdade

A crítica, por vezes, é direcionada aos racionalistas: “A Inquisição achava que tinha a verdade! Claramente, essa coisa de ‘verdade’ é perigosa.” Existem várias respostas óbvias, como “Se você acha que ter a verdade te autoriza a torturar e matar, você está cometendo um erro que não tem nada a ver com epistemologia.” Ou “Então, aquela declaração histórica que você acabou de fazer sobre a Inquisição, é verdadeira?”

A estupidez ao contrário não é inteligência: “Se o seu computador atual parar de funcionar, você não pode concluir que tudo no sistema atual está errado e que você precisa de um novo sistema sem um processador AMD, uma placa de vídeo ATI… mesmo que seu sistema atual tenha todas essas coisas e não funcione. Talvez você só precise de um novo cabo de alimentação.” Chegar a uma conclusão ruim requer apenas um passo errado, não todos os passos errados. Os inquisidores acreditavam que 2 + 2 = 4, mas isso não era a fonte de sua loucura. Talvez o realismo epistemológico também não fosse o problema?

Parece plausível que, se a Inquisição fosse composta de relativistas, professando que nada era verdade e nada importava, eles teriam mostrado menos entusiasmo por sua tortura. Eles também teriam demonstrado menos entusiasmo se tivessem sido lobotomizados. Acredito que seja uma analogia válida. E ainda assim… acredito que a atitude da Inquisição em relação à verdade desempenhou um papel. A Inquisição acreditava que existia algo chamado verdade e que isso era importante; assim como Richard Feynman. Mas os inquisidores não eram buscadores da verdade. Eles eram os Guardiões da Verdade.

Certa vez, li um argumento (não consigo encontrar a fonte) de que um componente crucial de um zeitgeist é se ele localiza seus ideais no futuro ou no passado. Quase todas as culturas anteriores ao Iluminismo acreditavam em uma Perda de Prestígio — que as coisas já foram perfeitas em um passado distante, então ocorreu uma catástrofe e tudo desmoronou lentamente desde então:

Na época em que a vida na Terra era plena… Eles se amavam e não sabiam que aquilo era “amor ao próximo”. Eles não enganavam ninguém, mas não sabiam serem “pessoas de confiança”. Eles eram confiáveis e não sabiam que aquilo era “boa-fé”. Viviam juntos, dando e recebendo livremente, e não sabiam serem generosos. Por isso, seus atos não foram registrados. Eles não fizeram história.” 

The Way of Chuang Tzu (O caminho de Chuang Tzu), traduzido para o inglês por Thomas Merton [1] .

A idade perfeita do passado, de acordo com nossa melhor evidência antropológica, nunca existiu. No entanto, uma cultura que enxerga a vida fluindo inexoravelmente para baixo é muito diferente de uma cultura em que você pode alcançar alturas sem precedentes. (Emprego o termo “cultura” e não “sociedade” porque é possível ter várias subculturas numa sociedade.)

Poderíamos dizer que a diferença entre a Inquisição e Richard Feynman era que a Inquisição acreditava que possuía a verdade, enquanto Richard Feynman buscava a verdade. No entanto, essa afirmação não é totalmente defensável, pois, sem dúvida, havia algumas verdades que Richard Feynman acreditava também possuir, como “o céu é azul” ou “2 + 2 = 4”.

Sim, existem certas verdades efetivas na ciência. A Teoria da Relatividade Geral pode ser refutada por futuras descobertas da física — embora de forma alguma isso preveja que o Sol orbitará Júpiter. A nova teoria deve incorporar as previsões bem-sucedidas da antiga teoria, não as contradizer.

Embora a teoria da evolução opere em um nível de organização superior ao dos átomos, nenhum conhecimento obtido sobre quarks anula os princípios do darwinismo, da teoria celular da biologia, da teoria atômica da química ou de várias outras descobertas brilhantes cuja validade está consolidada e indiscutível.

São essas “verdades absolutas”? Não no sentido de possuir uma probabilidade literalmente igual a 1,0. No entanto, são casos em que a ciência basicamente considera que possui a verdade. No entanto, os cientistas não torturam pessoas que questionam a teoria atômica da química. Por quê? Será porque não acreditam que a certeza justifica a tortura? Bem, essa é a diferença superficial, mas por que os cientistas não acreditam nisso?

Será porque a química não impõe uma penalidade sobrenatural de tortura eterna por não acreditar na teoria atômica da química? No entanto, voltamos e nos perguntamos: “Por quê?” Por que os químicos não acreditam que você irá para o inferno se não acreditar na teoria atômica?

Será porque as revistas científicas não publicarão seu artigo até você obter uma observação experimental sólida do inferno? Ainda assim, muitos cientistas conseguem suprimir seu reflexo cético na hora que querem. Por que os químicos não possuem uma seita que argumenta que os não químicos vão para o inferno, já que muitos deles são cristãos de qualquer maneira?

Perguntas como essa não têm respostas simples devido a um único fator. No entanto, eu diria que um dos elementos está relacionado a adotar uma postura produtiva em relação à verdade, em oposição a uma postura defensiva em relação a ela.

Quando você se torna o Guardião da Verdade, sua única contribuição útil para a Verdade é protegê-la. Quando você está buscando ganhar o Prêmio Nobel de Química descobrindo o próximo benzeno ou fulereno, alguém que desafia a teoria atômica não representa tanto uma ameaça à sua visão de mundo quanto uma perda de tempo.

Quando você é um Guardião da Verdade, tudo o que você pode fazer é tentar evitar o inevitável declínio em direção à entropia, eliminando qualquer coisa que se desvie da Verdade. Se houver uma maneira de bombear contra a entropia, gerando novas crenças verdadeiras juntamente com um pouco de calor residual, essa mesma bomba pode manter a verdade preciosa viva sem a necessidade de uma polícia secreta. Na química, você pode replicar experimentos e ver por si mesmo — e isso mantém a valiosa verdade viva sem a necessidade de violência.

E não é tão terrível se cometermos um erro em algum lugar — acabamos acreditando em uma pequena inverdade por um tempo — porque amanhã podemos recuperar o terreno perdido.

Mas todo esse truque só funciona porque o método experimental é um “critério de validade” e não um mero “critério de comparação”. Assim como os experimentos podem recuperar a verdade sem a necessidade de autoridade, eles também podem anular a autoridade e criar novas crenças verdadeiras onde antes não existiam.

Onde existem critérios de validade que não são apenas critérios de comparação, podem ocorrer mudanças que são melhorias, ao invés de ameaças. Onde há apenas critérios de comparação, onde não há como contornar a autoridade, também não há como resolver um desacordo entre as autoridades. A menos que seja pela extinção. As armas mais poderosas vencem.

Não pretendo fornecer uma visão abrangente e completa da história. Pretendo, sim, destacar uma diferença psicológica fundamental entre ver sua grande causa na vida como proteção, guarda e preservação, em oposição a descobrir, criar e melhorar. A direção “para cima” do tempo aponta para o passado ou para o futuro? Essa distinção lança sua sombra sobre tudo, estendendo seus tentáculos por todos os lugares.

É por isso que sempre insisto, por exemplo, que, se você pretende discutir a “ética da IA”, é melhor abordar como melhorar a situação atual usando IA, em vez de apenas evitar que várias coisas deem errado. Ao adotar critérios meramente comparativos, você começa a perder o controle de seus ideais — perde de vista o que é certo e errado e começa a ver apenas o que é “diferente” e “igual”.

Também argumentaria que essa diferença psicológica fundamental é uma das razões pelas quais um campo acadêmico que para de fazer progresso ativo tende a se tornar mesquinho (pelo menos pelos padrões refinados da ciência). A caça às bruxas é moderada pelos padrões históricos; a maioria dos sistemas de crença com postura defensiva já foi levada ao extremo. Quando a quantidade de novas descobertas diminui, não há mais nada para se fazer durante o dia, exceto caçar os hereges.

Para obter os maiores benefícios para a saúde mental da postura de descobrir/criar/melhorar, é preciso realmente progredir, e não apenas esperar por isso.

Referências

[1] Zhuangzi and Thomas Merton, The Way of Chuang Tzu (New Directions Publishing, 1965).