Meros Messias

Já abordei o efeito halo, que leva as pessoas a verem todas as características positivas como correlacionadas. Pessoas mais atraentes, por exemplo, também são vistas como mais gentis, honestas e inteligentes. Isso nos leva a admirar mais os heróis super fortes e imunes a balas. Mas, logicamente, é preciso muito mais coragem para ser um herói quando se é vulnerável. Além disso, agir corajosamente para salvar uma vida revela mais virtude do que salvar o mundo inteiro. (Embora, se você tiver que escolher, salve o mundo, é claro!)

Mas vamos a um exemplo mais concreto.

John Perry era um policial de Nova York, extropiano e transumanista — foi assim que soube dele. Perry estava prestes a se aposentar e abrir seu próprio escritório de advocacia, quando um avião atingiu o World Trade Center. Ele morreu quando a torre norte desabou. Não o conheci pessoalmente, então não posso afirmar com certeza, mas a maioria dos extropianos não acredita em Deus, e imagino que Perry também fosse ateu.

Ou seja, Perry sabia que arriscava a própria vida toda semana no trabalho. E não era como a maioria das pessoas na história, que sabiam que só podiam escolher como morrer e decidiram fazer valer a pena. Perry era transumanista; ele tinha esperança genuína. Mesmo assim, arriscou a vida. Não por esperar recompensa divina, nem por esperar algo após a morte. Mas, porque havia outras pessoas em perigo, que também não tinham almas imortais, e sua vida não valia mais do que a delas.

Não conheci John Perry. Não sei se ele via o mundo assim. Mas o fato de um ateu e transumanista poder ser policial, poder correr para um prédio em chamas, diz mais sobre o espírito humano do que todos os mártires que já almejaram o paraíso.

Este é um policial em particular…

… e agora, o super-herói.

Segundo os cristãos, Jesus Cristo andava sobre as águas, acalmava tempestades e expulsava demônios. Que vida confortável! Fome? Multiplique pães. Não gosta da figueira? Amaldiçoe-a. Problemas com os romanos? Deixe com seu Pai. Mas essa vida encantada acabou quando Jesus se entregou para a crucificação. Ser pregado em uma cruz não é uma morte agradável. Contudo, segundo os cristãos, Jesus sabia que ressuscitaria após três dias e iria para o céu. Qual ameaça o levou a enfrentar esse sofrimento temporário, seguido da eternidade no paraíso? A vida de uma pessoa? A corrupção da igreja na Judéia ou a opressão romana? Não. Segundo os cristãos, o destino eterno de toda a humanidade estava em jogo.

Mas não quero condenar alguém que não seja verdadeiramente culpado. E se Jesus — ou melhor, vamos usar seu nome correto: Yeishu — E se Yeishu de Nazaré nunca tivesse andado sobre as águas, mas ainda assim tivesse desafiado a igreja da Judéia, estabelecida pelo poder romano? Isso não mereceria mais honra do que a dada a Jesus Cristo, que era apenas um messias comum?

Infelizmente, parece mais admirável um herói com superpoderes. Parece revelar mais virtude morrer temporariamente para salvar o mundo do que morrer de vez, confrontando uma igreja corrupta. Parece tão comum, como se muitos outros na história tivessem feito o mesmo.

Confortavelmente sentados  dois mil anos no futuro, podemos criticar Yeishu, mas ele fez o que acreditava ser certo: confrontou uma igreja que considerava corrupta e morreu por isso. Sem o benefício do tempo, dificilmente poderia prever o impacto real de sua vida no mundo. Comparado a outros profetas da época, ele provavelmente era mais honesto, menos violento e mais corajoso. Se ignorarmos as consequências não intencionais, o pior que se pode dizer de Yeishu é que outros na história se saíram melhor (Epicuro, Buda e Marco Aurélio vêm à mente). Yeishu morreu para sempre e, de certa forma, o fez por honestidade. Mil e quinhentos anos antes da ciência, a honestidade religiosa não era um paradoxo.

Como disse Sam Harris [1]:

Não basta que Jesus tenha sido um homem que se transformou a tal ponto que o Sermão da Montanha pudesse ser a confissão de seu coração. Ele também precisava ser o Filho de Deus, nascido de uma virgem e destinado a retornar à Terra em glória. O efeito desse dogma é colocar o exemplo de Jesus permanentemente fora de nosso alcance. Seu ensinamento deixa de ser um conjunto de afirmações empíricas sobre a conexão entre ética e percepção espiritual e, em vez disso, se torna um conto de fadas gratuito e bastante terrível. Segundo o dogma do cristianismo, tornar-se como Jesus é impossível. Só se pode enumerar os próprios pecados, acreditar no inacreditável e aguardar o fim do mundo.

Duvido muito que Yeishu tenha realmente proferido o Sermão da Montanha. Todavia, Yeishu merece honra. Ele merece mais honra do que os cristãos lhe concedem.

Mas, como Yeishu provavelmente acreditava que sua alma sobreviveria, ele não merece mais honra do que John Perry.

Referências

[1] Sam Harris, The End of Faith: Religion, Terror, and the Future of Reason (WW Norton & Company, 2005).